Padre Beocca
Padre Beocca veio de uma cidade que, para a época, era considerada grande; moravam umas 80–90 famílias ali. Por ser uma cidade tão grande assim, existiam pessoas que não se conheciam, apenas pelas fofocas que rolavam na cidade. E Beocca foi vítima de muitas dessas fofocas que aconteciam. Ele era apenas uma criança, com seus 11 anos.
Beocca ajudava seu pai na criação das ovelhas, da horta e do pomar da pequena propriedade, enquanto sua mãe preparava alimentos e produtos à base dessas matérias-primas que eles produziam nessa pequena fazenda. Eles vendiam esses produtos em uma das lojas na cidade. Essa loja costumava receber muitos clientes e elogios. A mãe de Beocca era uma cozinheira de mão cheia, fazia uma torta de carneiro com maçãs que toda a cidade fazia fila para comprar. Certa vez, Beocca teve que ir até a cidade com a mãe para ficar na loja da família e, brincando na frente da loja, Beocca conheceu Dom, que deveria ter uns 13 anos. Beocca não conhecia muita gente de fora da igreja, porque ele quase não fugia da rotina de trabalhar na fazenda e ir à igreja. Dom causou em Beocca sentimentos que ele não conseguia entender. Ele não sabia o que estava acontecendo, mas, quando foi embora, ficou pensando em Dom e em quando conseguiria vê-lo novamente. Beocca lembrava de Dom em qualquer oportunidade que tinha, e, quando isso acontecia, vinha aquele sentimento novamente que ele não conseguia entender. Era algo muito estranho, parecia que ele tomava um soco no estômago. Algumas semanas depois, ele voltou à lojinha com sua mãe, e, ao encontrar com Dom novamente, Beocca sentiu uma felicidade que não se lembrava de ter sentido em outro momento da vida, e ali ele começou a entender que sua relação com Dom era diferente. As brincadeiras e a proximidade dos dois geraram burburinhos na cidade. Uma história chegou aos ouvidos do pai de Beocca, e, depois disso, ele nunca mais pôde ir à cidade ficar na lojinha com sua mãe.
A família de Beocca era uma família muito tradicional. O único compromisso deles, além da loja e da fazenda, era frequentar a igreja da cidade. Eles iam todos os dias, diferente da maioria das pessoas da cidade, que só iam aos domingos e dias santos. E foi indo à igreja que Beocca aprendeu a ler e escrever; o padre responsável pela igreja obrigava Beocca a ler e replicar o Livro Sagrado até ele ter decorado tudo que ali estava escrito.
O responsável por essa igreja era o padre Issor Olecram, e esse centro religioso era de uma religião politeísta chamada Trinae Septem. Ela foi criada com base na ideia de que existiam sete deuses diferentes, com ideais e princípios diferentes, e que "quando o sol nascer a oeste e se puser a leste, quando os mares secarem e as montanhas forem sopradas pelo vento como folhas", esses deuses batalhariam nos céus e os fiéis batalhariam no solo. Então, quem conseguisse juntar a maior quantidade de fiéis daria uma vantagem para o deus representante. O deus escolhido por Issor foi o deus Grubeai, que pregava que quem cometesse qualquer pecado deveria sofrer punições físicas e psicológicas, e que essas punições os fariam aprender que não se deve quebrar as regras impostas pelo Livro Sagrado. Os pais de Beocca levavam isso muito a sério, e o mantinham sob constante fiscalização.
E foi indo à igreja, lendo e reescrevendo o Livro Sagrado, que Beocca teve contato pela primeira vez com Mrothard, que era outro deus dessa religião. Muito diferente de Grubeai, ele defendia que, quando as pessoas pecavam, o faziam por interferência das necessidades que viviam. Uma pessoa podia até ser "ruim" no seu âmago, mas uma centelha de bondade existia dentro dela, e era essa centelha que deveria ser cultivada. Que, independente do crime/pecado cometido por essa pessoa, ela poderia ser salva caso tivesse contato com os escritos e ideias de Mrothard. Beocca criou um certo fascínio por Mrothard. Quando terminava a obrigação de copiar uma parte do Livro Sagrado, Beocca procurava na biblioteca da igreja qualquer informação a respeito de Mrothard: outros livros, cartas, pinturas, qualquer coisa que contasse algo a respeito desse deus bondoso, diferente do deus que Issor pregava naquela igreja. Em uma dessas oportunidades, Beocca leu, em uma carta, que Mrothard viveu uma época na Vila de Sena, e que possivelmente lá teria deixado um herdeiro. Porém, este herdeiro não tinha nome nem descrição. Ele nem mesmo sabia se isso era verdade, mas sabia que teria de investigar essa história pessoalmente. Se isso fosse verdade, esse herdeiro possivelmente teria algum tipo de conexão com Mrothard, e, quem sabe, algum tipo de poder.
Poucos dias antes de completar 15 anos, quando estava a caminho da igreja com seus pais, viu uma movimentação estranha em uma parte pouco movimentada da cidade. Ao chegarem perto, viu Dom. Quando viu o antigo amigo, sentiu novamente aquela porrada no estômago, mas, dessa vez, era diferente — foi mais forte. Como se estivessem arrancando o estômago dele para fora do corpo. Dom estava sendo espancado pelos fiéis da igreja, a mando de Issor. Foi encontrado com ele dezenas, senão centenas, de cartas trocadas com um "admirador secreto", e nessas cartas se falava muito de amor entre os dois, um amor proibido. Quando viu isso, Beocca congelou por um segundo. Quando voltou a si, fingiu que nada havia acontecido e seguiu normalmente com seu dia. Porém, quando os pais de Beocca tinham ido dormir naquela noite, ele juntou algumas mudas de roupa, alguns livros que havia separado sobre Mrothard, além de um Livro Sagrado da Trinae Septem, uma adaga, um cajado de seu pai e um turíbulo da igreja. Antes de sair, pegou uma caixa que escondia em seu quarto, abriu e tirou de lá uma carta, deixando-a em cima da cama. Era uma das cartas que trocava com Dom há anos. Eles haviam desenvolvido uma forma de se comunicar, deixando cartas embaixo de um banco específico da igreja. Beocca nunca mais voltou para sua cidade natal.
Beocca passou por diversas locais, cidades e vilarejos. Em cada lugar que passava ele usava um disfarce diferente, então ele foi muita coisa ao longo dos anos para conseguir sobreviver. Com o passar dos anos ele adquiriu muita malicia com a vida e com as poucas pessoas as quais convivia. Em todos os locais que passava, Beocca procurava duas coisas: Uma igreja da Trinae Septem e algum homem para satisfazer seus desejos carnais. Mas nunca encontrou algum que o despertasse o menor dos sentimentos como Dom despertava. Então era somente um passa-tempo, até ele ir embora dessa cidade e chegar na próxima, com o objetivo sempre de chegar a Vila de Sena.
Passaram muitos anos de Beocca andarilho procurando a tão sonhada Vila, ele já não se lembrava quantos anos e nem quantos romances teve ao longo desse tempo, e mesmo assim, somente um se mantinha em sua cabeça.
Há pouco mais de uma década, Beocca finalmente conseguiu chegar a Vila de Sena, ainda carregava consigo o Livro Sagrado, os livros sobre Mrothard e as cartas que nunca conseguiu abandonar. Os moradores que o receberam, observando que ele estava com o Livro Sagrado em mãos, e com roupas maltrapilhas perguntaram se ele era o Padre que iria substituir o recém falecido padre Olem Oibaf, Beocca confirmou e desde então vem celebrando os cultos diariamente, enquanto procura mais informações sobre o suposto herdeiro de Mrothard.